O Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de
São Bernardo do Campo (COMPAHC-SBC) funciona desde 1984 como um “órgão de
assessoramento e colaboração da Administração Municipal, em todos os assuntos
relacionados com o patrimônio histórico-cultural, cabendo-lhe opinar sobre a
inclusão de bens no patrimônio, fazer sugestões, emitir pareceres em pedidos de
demolições e em qualquer expediente que verse sobre bens imóveis e móveis que tenham
significação histórica e cultural para o Município”1.Esse conselho é responsável pela preservação de bens culturais
significativos de São Bernardo do Campo como os Estúdios Vera Cruz, a Cidade da
Criança e a torre da tecelagem Elni, traços da memória da industrialização e da
modernidade vivenciada por toda a região metropolitana de São Paulo em meados
do século XX. Criado no mesmo ano das Diretas Já, o próprio COMPAHC-SBC carrega
em si a importância simbólica de ter se constituído como um espaço qualificado
de participação da sociedade civil junto ao Poder Público ainda na vigência do
governo militar.
Iniciativas como a da criação do COMPAHC-SBC inspiraram a
Constituição Federal de 1988 de duas maneiras. Uma foi o reconhecimento da
competência dos municípios para “promover a proteção do patrimônio
histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal
e estadual”2. Outra foi o reconhecimento de que “o Poder Público, com a
colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural
brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e
desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”3. Nota-se que mesmo sendo o patrimônio cultural ainda uma
responsabilidade do Poder Público, a Constituição reconhece o direito da
população em participar das decisões relativas à sua preservação. Nesse
sentido, ao inseri-lo como parte integrante das diretrizes gerais da política
urbana, o Estatuto da Cidade determina que “Os organismos gestores das regiões
metropolitanas e aglomerações urbanas incluirão obrigatória e significativa
participação da população e de associações representativas dos vários segmentos
da comunidade, de modo a garantir o controle direto de suas atividades e o
pleno exercício da cidadania”4, definindo ainda expressamente os
órgãos colegiados – como o COMPAHC-SBC – como instrumentos de gestão
democrática da cidade.
Foi em consonância com os princípios democráticos previstos
pela Constituição e pelo Estatuto da Cidade que, após convocação e seleção
criteriosa aprovada pelo COMPAHC-SBC que foi nomeada pela Portaria nº 9485 de
06 de setembro de 2016 da Prefeitura Municipal a composição atual do Conselho
para o biênio de 2016 a 2018. Tal formação foi constituída em regime de
paridade com representação de oito organizações da sociedade civil e de oito
setores da administração municipal. Entre as organizações da sociedade civil
figuram grupos de atuação significativa em São Bernardo do Campo, como o
Movimento SOS Chácara Silvestre, o Grupo Cênico Regina Pacis e a Faculdade São
Bernardo (FASB) ao lado de instituições altamente qualificadas como a
Universidade de São Paulo (USP), a Associação Nacional de História (ANPUH) e o
Centro Internacional para a Conservação do Patrimônio do Brasil (CICOP-Brasil),
além do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (CREA) e a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB). Trata-se portanto, de um colegiado formado por
representantes com notável conhecimento de causa e reconhecido mérito para
deliberar sobre o patrimônio cultural bernardense.
Em maio de 2017, entretanto, os membros do COMPAHC-SBC
receberam com grande surpresa e consternação a notícia da aprovação da Lei
Municipal nº 6550/20175 pela Câmara Municipal de São Bernardo do Campo a partir de
projeto de lei proposto pelo executivo municipal. Além de dissolver de imediato
a última formação do Conselho6 legalmente nomeada antes do final de
sua gestão, tal lei fere gravemente o princípio da paridade ao reduzir para
apenas quatro as vagas de representantes da sociedade civil no COMPAHC-SBC
frente a oito representantes da Prefeitura Municipal e um da Câmara Municipal7. Submete ainda todas as atividades do COMPAHC-SBC à manifestação
prévia das secretarias de governo8, e a escolha do presidente e do
vice-presidente do Conselho à escolha do prefeito9. Dessa maneira compromete o poder de decisão da sociedade civil
no colegiado, sempre em minoria nas votações, e submetendo sua atuação sempre à
aceitação tácita do previamente estabelecido pelo governo municipal, esvaziando
assim a própria natureza do COMPAHC-SBC como espaço democrático de participação
social nas decisões do poder público que dizem respeito ao patrimônio cultural
bernardense.
Ora, de fato a atualização da legislação é uma demanda do
COMPAHC-SBC desde ao menos 2006 nunca atendida pela Prefeitura e pela Câmara
Municipal uma vez que a legislação sobre o patrimônio cultural em São Bernardo
do Campo, criada em 1984, está desatualizada em relação à Constituição de 1988
e ao Estatuto da Cidade. No entanto, causa grande estranhamento o fato de que a
Lei 6550/2017 foi aprovada às pressas à revelia do COMPAHC-SBC, sem consulta
aos conselheiros, e sem aviso prévio. Ainda mais suspeito é o prazo de sua
aprovação apenas uma semana após a 198a Reunião Ordinária do Conselho
em que foi discutida uma grave intervenção na Cidade da Criança sem a devida
apreciação e autorização pelo colegiado. Trata-se da construção de uma nova
edificação no bem tombado para sediar uma Mini Fazenda Educativa, um projeto no
mínimo dispendioso uma vez que os esforços da Prefeitura bem poderiam se voltar
para obras de conservação e manutenção das edificações já existentes e
oficialmente protegidas pelo tombamento. Vale
mencionar que o COMPAHC-SBC e o governo municipal já vinham alcançando bom entendimento
mútuo no caso da reforma da Praça Lauro Gomes, outro bem público tombado, para
garantir a preservação dos aspectos de reconhecidos valores culturais, como seu
desenho, seus bancos e suas árvores. Não havia, portanto, desconhecimento ou
qualquer outra justificativa para que as obras na Cidade da Criança fossem
realizadas sem conhecimento do COMPAHC-SBC, conforme a legislação vigente.
Ao que parece, o Prefeito Orlando Morando e os vereadores de
São Bernardo do Campo fazem eco ao processo de desautorização e desmonte dos
espaços de participação social levado a cabo na esfera federal pelo governo de
Michel Temer à Presidência da República, como é o caso do decreto presidencial
de 26 de abril de 2017 e a Portaria 577 do Ministério da Educação (MEC) retirando
poderes e autonomia do Fórum Nacional de Educação, como a coordenação da
Conferência Nacional de Educação (CONAE) e reduzindo drasticamente a
representatividade da sociedade civil no Fórum. Outro exemplo é o Decreto 9.076
de 8 de junho de 2017 que tira poderes do Conselho Nacional das Cidades como o
de eleger os membros da próxima gestão. Vale lembrar ainda a Medida Provisória
nº 728 de 23 de maio de 2016 assinada por Michel Temer, na tentativa de
esvaziar o poder de ação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), instituição pública octogenária cuja instância máxima de
decisão é também um conselho participativo. A respectiva medida provisória
previa a criação de uma “Secretaria Especial de Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional” sem função definida mas que certamente se sobreporia ao
IPHAN especialmente nas decisões sobre licenciamento de obras em bens tombados
e seu entorno10. Devido à forte pressão do Conselho Consultivo do IPHAN e
abaixo-assinado apresentado por diversas lideranças em especial da comunidade
acadêmica a medida foi brevemente revogada.
Em todos os casos acima as organizações da sociedade civil
que ocupam esses espaços de gestão democrática têm resistido e defendido os
princípios constitucionais de participação social junto aos poderes públicos.
Também os conselheiros do COMPAHC-SBC entraram com ação no Ministério Público
em defesa da participação efetiva da sociedade civil na preservação do
patrimônio cultural bernardense. Ainda assim, é preciso que a população
resista, se mobilize e pressione os representantes eleitos dos poderes públicos
não só em defesa do trintenário COMPAHC-SBC mas de todos os órgãos e espaços
democráticos pelo livre exercício de direitos e de cidadania. São Bernardo do
Campo, e toda a região do ABC Paulista, já foi um palco significativo de
movimentos sociais pela redemocratização, é preciso que continue defendendo
sempre os avanços do próprio estado democrático de direito que ajudou a
construir.
Marcelo de Paiva
Renato Alencar Dotta
Simone Scifoni
Maria Sabina Uribarren
1-
Lei Municipal nº 2608 de 05 de junho de 1984.
2- Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, Artigo 30º, inciso IX.
4-
Lei Federal 10.257 de 10 de julho de 2001.
5- Disponível
em
https://leismunicipais.com.br/a2/sp/s/sao-bernardo-do-campo/lei-ordinaria/2017/655/6550/lei-ordinaria-n-6550-2017-dispoe-sobre-o-patrimonio-cultural-do-municipio-o-conselho-municipal-do-patrimonio-historico-e-cultural-de-sao-bernardo-do-campo-compahc-sbc-e-da-outras-providencias
6-
Lei Municipal nº 6550 de 11 de maio de 2017, artigo 25º.
10- Um manifesto em defesa do IPHAN foi publicado no Portal Vitruvius, disponível
em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/16.105/6052
LEI Nº 6565, DE 22 DE JUNHO DE 2017
ResponderExcluirAltera o art. 7º e o caput do art. 17 da Lei Municipal nº 6.550, de 11 de maio de 2017, que dispõe sobre o patrimônio cultural do Município, o Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de São Bernardo do Campo - COMPAHC-SBC, e dá outras providências.
SÃO 9 REPRESENTANTES DA PREFEITURA E 7 DA SOCIEDADE CIVIL, APESAR DA ALTERAÇÃO ELES CONTINUAM COM A MAIORIA...