Neusa Borges
Comida não é apenas o combustível para manter o nosso corpo vivo: envolve saberes, carrega tradições e é parte de nosso patrimônio cultural. Portanto, esses fatos não deveriam ser desconsiderados pelos órgãos responsáveis pela defesa da qualidade daquilo que levamos à boca.
O jornal O Estado de São Paulo, através do suplemento Paladar, vem denunciando as dificuldades dos produtores artesanais diante das exigências impostas pelos órgãos que cuidam de normatizar e inspecionar os alimentos no País.
O queijo canastra de Minas, reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) como patrimônio imaterial, e até virou tema de documentário, tem cruzado a fronteira do Estado de forma clandestina, pois o produtor não consegue atender às exigências do Serviço de Inspeção Federal (SIF), vinculado ao Ministério da Agricultura.
No Nordeste, os coalhos e o marajoara, ambos feitos de forma artesanal, também estão lutando para sair da ilegalidade.
Recentemente, li no jornal o desabafo de d. Gasparina, que após 36 anos fazendo e comercializando doces na cidade de Araxá, em Minas Gerais , se viu obrigada a pendurar os seus tachos de cobre, em atendimento à resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária ( Anvisa ), que proíbe o contato de alimentos com utensílios de cobre.
Segundo a doceira, ao ser esfregado com vinagre e sal grosso, o tacho de cobre não oferece perigo algum para a saúde. Mas, como não quer agir de forma clandestina, disse, prefere desistir de continuar usando os tachos herdados da avó do marido e da sogra.
Ao ser questionada sobre as restrições, a Anvisa afirmou que a norma que proíbe o contato de alimentos em recipientes de cobre deve passar por revisão, uma vez que há análises indicando quantidade insignificante do elemento nos doces feitos com os tachos no País.
A legislação também tem amargado a vida do pequeno produtor de mel de abelhas nativas, pois, para atender às normas vigentes, é necessário investir cerca de R$ 50 mil.
Os equipamentos de madeira usados nas cozinhas, tais como a colher de pau, a tábua de corte, rolo e pilão, passaram a ser substituídos pelos de plástico, uma vez que aqueles passaram a ser vistos como fontes de contaminação dos alimentos. No entanto, durante um debate com chefs de cozinha e especialistas, a gerente-geral de Alimentos da Anvisa admitiu que ainda não há estudos que comprovam que o plástico é mais higiênico que a madeira.
O problema é que a norma que serve de base para a fiscalização, embora sexagenária, está desatualizada até os dias de hoje.
No dia 29 de março de 1952, o então presidente Getúlio Vargas assinou o decreto que instaurou o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária dos Produtos de Origem Animal (o Riispoa), contendo mais de 900 artigos. De lá para cá, o Rispoa passou por alterações em 1962, 1996 e 2010. Porém, afirmou Roberto Smeraldi, gastrônomo e diretor da organização Amigos da Terra, “trata-se de algo fora de sintonia com a realidade do Brasil, do consumo e da tecnologia de hoje. Estamos defasadíssimos”.
No ano de 2008, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), em reconhecimento ao atraso da lei, propôs uma revisão geral. Ocorre que o novo regulamento não tem previsão de ser publicado e, enquanto não há mudanças, os nossos pequenos produtores estão submetidos às normas que regulam as grandes indústrias.
Tentando alertar para o fato de que a cozinha tradicional do Brasil estava ameaçada, um ano atrás o Paladar publicou o Manifesto Cozinhista Brasileiro. Mais recentemente, o assunto voltou à tona, com o lançamento do Manifesto Cozinhista Brasileiro Parte II – Conversa com a Anvisa. O debate, realizado durante o 6º Paladar – Cozinha do Brasil, reuniu representantes da Anvisa, chefs, produtores e especialistas.
Certamente, qualquer pessoa com um mínimo de bom senso se preocupa e deve, sim, se preocupar com a qualidade da comida que ingere; no entanto, é preciso uma maior flexibilidade com as normas, para não deixar na clandestinidade os produtores artesanais.
Há especialistas que entendem que não se trata de atualizar o Riispoa, mas criar novo marco legal com regulamento alternativo para produtos artesanais.
O fato é que, se houver mais diálogo entre as autoridades que cuidam da fiscalização com produtores, chefs e técnicos, é possível encontrar um equilíbrio entre saúde e tradições culinárias. Caso contrário, a galinha de cabidela– também na mira da fiscalização sanitária – somente será notícia nos livros de Eça de Queiros e de Jorge Amado.
O Brasil, que a cada dia vem ganhando projeção no cenário internacional, precisa zelar pelo seu patrimônio cultural e gastronômico.
Oportuno, lúcido e bem fundamentado este seu texto, Neusa. Com Eça de Queiroz, eu diria que a poesia e a cozinha são irmãs, selecionar e escolher palavras assemlha-se a selecionar e escolher maçãs, pimentões ou mandioquinhas no mercado. É preciso pensar nesses patrimônios também, sem radicalismos. Parabéns.
ResponderExcluirDalila