Dalila Teles Veras
No último mês de julho decorreu o centenário do andreense Octaviano Armando Gaiarsa, autor, dentre muitas obras, de "A cidade que dormiu três séculos". A cidade de Santo André que até hoje adota oficialmente a concepção histórica de Gaiarsa (ainda que por muitos hoje contestada) cochilou feio e não se lembrou da data. Nenhuma comemoração "oficial" foi vista por aqui. Não fosse o jornalista Ademir Medici a lembrar da efeméride em várias matérias dedicadas ao aniversariante em sua coluna Memória, no Diário do Grande ABC, a data teria passado completamente em branco.
Gaiarsa não era propriamente um historiador (pois não tinha formação científica específica), mas teve o mérito de guardião da memória local e um dos pioneiros a registrar essa memória, registros que, diga-se, serviram para que muitos acadêmicos, provocados justamente pelas "imprecisões históricas", transformassem esses registros em desafios para pesquisas, dissertações e teses, ainda que algumas delas viessem justamente para "desconstruir" essa história.
O próprio Gaiarsa, em palestra proferida na Livraria Alpharrabio, sob o título Santo André de Ontem, dentro do ciclo "O Criador e a Cidade" (fevereiro de 1993), humildemente admitia que "levantou a poeira" e que "essa semente frutificou" nas cerca de duas centenas de trabalhos versando sobre o ABC que circulavam à época. (*)
Apesar de considerá-lo um intelectual de pensamento conservador, membro e legítimo porta-voz da elite intelectual e econômica de seu tempo, devo confessar que nutria admiração pelo ser humano que era e, sobretudo, por sua ânsia permanente de saber, seu entusiasmo, sincero, diante das próprias descobertas.
Certa feita, meados dos anos 80, numa das tardes que passei conversando com ele em seu apartamento da Rua Monte Casseros (por mim denominado de "laboratório alquímico"), após mostrar-me alguns de seus originais, destacar livros de sua biblioteca, vidrinhos com terra retirada quando da escavação do que hoje é nossa Av. Perimetral, levou-me à área de serviço da casa para mostrar-me alguns de seus "experimentos" com casulos e gravetos. Fiquei emocionada ao ver o entusiasmo menino do já então octogenário diante da evolução de suas pesquisas. Tinha interesse por absolutamente tudo, desde botânica, medicina (profissão que exerceu durante toda a vida), literatura, paleografia, heráldica, fotografia, enfim... Guardava, arquivava tudo, zeloso guardião de nossa história.
Após aquela visita, dediquei-lhe este poema que publiquei a seguir no livro Subvertida Palavra - Coletânea Livrespaço IV (1988).
Busca e Certeza
para Octaviano A. Gaiarsa
Nos gravetos e tramas de casulos
no intricado desenho de moléculas
no contorno de antigos epigramas
nas imagens recriadas no ampliador
a busca, incansável, da beleza.
No registro do momento
na estante atulhada de memória
na guarda da história
a procura do eterno.
A vida atrás dos traços
a vida atrás das lentes
a vida na palavra precisa
macerada - fibra viva
a certeza de amarrar emoções.
Recentemente, ao ouvir a professora Sandra Perez proferir a palestra "Santo André: a invenção da cidade", tema de sua dissertação para obtenção do título de Mestre em História Social, na Universidade de São Paulo (**), pude, finalmente aclarar, à luz daqueles argumentos científicos de sua pesquisa, muitos das dúvidas que me assaltavam ao ler os livros de Gaiarsa , muito em especial, sobre a opção oficial pela manutenção da data de fundação da cidade, ou seja, a data quinhentista que nada tem a ver com a cidade nem a região do ABC de hoje, dúvidas muitas vezes por mim abordadas em crônicas publicadas na imprensa e no meu blog.
Gaiarsa faleceu no dia 16 de junho de 2005, aos 93 anos de idade e a cidade de Santo André teve a sensibilidade de homenageá-lo. Em 2006, um ano após sua morte, o Museu municipal passou a denominar-se Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa. Nada mais justo. O Museu que funciona desde 1990 no prédio do antigo I Grupo Escolar do ABC, onde Gaiarsa aprendeu as primeiras letras, hoje preserva sua coleção de documentos pessoais, jornais, livros e objetos que somam mais de 3.000 itens, além de um inestimável acervo de 2.000 fotografias sobre a cidade, doados por ele e, posteriormente, por seus familiares.
Curioso constatar que nem mesmo o Museu que leva seu nome lembrou do seu centenário. Esta seria, e ainda é, posto que o ano não terminou, uma boa oportunidade para mostrar ao público parte desse precioso acervo que está sob sua guarda e promover, além de visitas guiadas à exposição iconográfica de seu patrono, um ciclo de palestras de pesquisadores que, assim como a prof. Sandra Perez, acima citada, estudam, à luz de outras formas de análise histórica e sociológica, a história que o pioneiro Gaiarsa registrou.
(*) Essa palestra e o debate dela decorrente, estão transcritos no livro Alpahrrabio 12 anos: uma história em curso (Alpharrabio Edições, 2004).
(**) A íntegra da dissertação pode ser lida no site da USP:
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