José de Souza Martins *
O capítulo II da Lei 9.018, de 2007, do município de Santo André, estipula que para fotografar a vila de Paranapiacaba, é preciso solicitar autorização prévia à Prefeitura, em Santo André, e obtê-la por escrito, mediante assinatura e aceitação dos termos. Se se tratar de fotografia sem fins comerciais, nada será cobrado. Mas, você terá a chateação de ir a Santo André para obter o salvo-conduto, como no tempo da Segunda Guerra mundial. Naquele tempo, estrangeiros da imigração, no Brasil há décadas, que eram milhões, tinham que ir à polícia e munir-se desse documento para qualquer viagem fora de seu município de residência. No caso de agora, se for fotografia publicitária ou para obtenção de vantagens econômicas, o interessado deverá pagar R$ 600,00 por dia de trabalho fotográfico.
J. S. Martins (2003) |
É falso que a cobrança possa ser feita “por se tratar de um patrimônio histórico, tombado em nível nacional, estadual e municipal”. Há milhares de bens tombados no Brasil, que não estão sujeitos a essa esdrúxula interpretação. Uma advogada, minha conhecida, com quem comentei o assunto, esclareceu-me que “a Lei sobre Direitos Autorais atualmente em vigor (Lei 9.610 de 19/02/1998), no seu Art. 48, que se encontra no Capítulo IV (Das limitações aos Direitos Autorais), ao tratar das hipóteses que não constituem ofensa aos direitos autorais, diz: "Art.48 - As obras situadas permanentemente em logradouros públicos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fotografias e procedimentos audiovisuais." Portanto, a lei de Santo André, sendo lei menor em face da lei federal, e as restrições que estabelece quanto à liberdade de representação visual de Paranapiacaba, é manifestamente ilegal. Pergunto-me, aliás, se não seria o caso de acionar o Ministério Público para que se pronuncie sobre a questão.
Além disso, a restrição à fotografia, seja de graça ou paga, torna Paranapiacaba completamente desinteressante para quem gosta de fotografar. Para quem não mora nas proximidades da prefeitura municipal, já é um tormento ter que fazer uma viagem apenas para obter a permissão estipulada em lei. Eu que já fotografei Paranapiacaba muitas vezes e fiz dessas fotos de muitos anos, em preto e branco, um dos capítulos do meu livro de fotografias publicado, em bela edição, na coleção “Artistas da USP”, da Editora da Universidade de São Paulo, estou desistindo de voltar lá para um novo empreendimento cultural desse tipo. Pois é, de fato, empreendido sem compensação financeira que cubra as não pequenas despesas com filmes e trabalhos de laboratório. Não se ganha dinheiro com livros desse tipo; perde-se. Não vou discutir com um burocrata da Prefeitura de Santo André o que é uma obra de interesse meramente cultural e artístico, se a municipalidade – Prefeitura e Câmara – chegou ao ponto de aprovar uma lei desse tipo.
Capa do livro de fotografias de Paranapiacaba |
Para ter um termo de comparação, consultei o preço das passagens aéreas de ida e volta a Buenos Aires (ida no dia 1º de agosto e volta no dia 6), e descobri que uma das companhias, a Pluna, está vendendo passagens a R$ 430,00. A administração de Buenos Aires nada cobra para que se fotografe a bela cidade, cheia de cenários, edifícios e museus de grande beleza, lugares ótimos para fotografar, gente acolhedora. De modo que, agora, os interessados em fotografia podem decidir entre Paranapiacaba e Buenos Aires, num mero cálculo da relação custo-benefício.
Na administração municipal do PT, havia sido encontrada uma saída inteligente para revitalização e preservação da decadente vila ferroviária, de meados do século 19. Lugar de início da modernidade no Brasil (v. meu livro A Aparição do Demônio na Fábrica, Editora 34, São Paulo, 2008), tem traçado e arquitetura baseados no Panóptico, de Jeremy Bentham (1748-1832). Cidadão que, aliás, conheci pessoalmente, em 1973, mumificado e sentado dentro de uma gaiola de vidro na entrada do restaurante da Universidade de Londres. Ele criou um modelo de prisão em que, o preso, em vez de ser ocultado, como ocorria nas masmorras medievais, é exposto, no seu peculiar confinamento, e se sente vigiado todo o tempo, mesmo que não o seja. Trata-se de um modelo de presídio que aumenta enormemente a produtividade da vigilância: um único guarda vigia centenas de presos a partir de sua cabina estrategicamente situada em ponto central do recinto. Função que era cumprida, em Paranapiacaba, pelo indevidamente chamado “Castelinho”, antiga casa do engenheiro-chefe. Visitei uma prisão desse tipo, desativada, dos tempos da ditadura de Fulgêncio Batista, em Cuba, e pude ter uma ideia do impressionante poder de vigilância que decorre dessa inovação tecnológica.
Entre nós, a modernidade nasce com a difusão de uma cultura repressiva em que a consciência da vítima é sua própria polícia. É o princípio lógico da linha de produção e da disciplina do moderno trabalho industrial. A modernidade nasce com a modernização do medo, o ser humano desconfiado de si mesmo. Volta e meia vou a Paranapiacaba, com alunos de Ciências Sociais, da Faculdade de Filosofia, da USP, para uma aula, justamente sobre a obra de Michel Foucault, o autor que estudou as implicações da inovação de Bentham, em particular, Vigiar e Punir, um estudo clássico sobre o panóptico. A estrutura física da vila operária é a do panóptico, a prisão do século 18.
Jeremy Bentham |
A fórmula que a administração municipal petista encontrou para revitalização da vila foi a de restaurar o conjunto urbano que a Prefeitura havia comprado da Rede Ferroviária Federal. Estimulou os moradores a transformarem suas casas, recuperadas, em restaurantes domésticos, adaptando as respectivas salas para o recebimento de clientes nos dias de maior afluxo de turistas: feriados, sábados e domingos. Os moradores foram treinados a se especializarem em determinada culinária e a servir, como se faz num restaurante. O esquema deu muito certo, pois a vila era muito mal servida de locais para refeições. Algumas casas se adaptaram para receber hóspedes em cômodo disponível, no estilo das “guest houses” inglesas. Invasores de casas foram afastados e a favelização da vila ferroviária foi revertida. Um belo programa que, associado ao festival de inverno e a outros programas musicais e culturais, aumentaram o fluxo turístico e, keynesianamente, criaram uma alternativa de renda e emprego para a população local.
O expresso turístico ferroviário da CPTM, de turismo de um dia, foi estabelecido, no governo José Serra, entre a Estação da Luz e a Estação de Paranapiacaba (além das linhas para Jundiaí e Moji das Cruzes), com parada na estação Celso Daniel, em Santo André. O trem agregou um importante e apropriado complemento ao esquema de revitalização urbana e de refuncionalização da antiga vila vitoriana de trabalhadores da ferrovia. Um conjunto articulado de medidas convergentes não só em benefício da população local, mas também em benefício da população da região metropolitana, carente de alternativas de turismo de família para os não possuidores de automóvel, turismo barato e educativo. Bela iniciativa do governo do Estado.
Infelizmente, foi no próprio governo do PT, em 2007, que alguém teve a má ideia de estabelecer restrições e dificuldades para o acesso de turistas à via antiga e peculiar, com a medida imprópria e descabida de instituir dificuldades ao uso da câmera fotográfica e à fotografia. Pelo visto, competência e incompetência andam juntas. Ao desestimular o próprio cerne da política de revitalização, com as restrições à fotografia, a Prefeitura de Santo André mata o principal aliado dessa política. Paranapiacaba só é interessante porque é um lugar fotografável. É seu único atrativo. Fotografia e turismo não podem ser separados em lugar nenhum do mundo. Seria como cobrar entrada para visitar Ouro Preto, Mariana, São Luís do Maranhão, Olinda. Só falta a Prefeitura de Santo André exigir passaporte para visitar a vila histórica. A iniciativa esdrúxula está baseada numa contradição específica de Paranapiacaba e na má interpretação do direito de propriedade que tem a Prefeitura sobre ruas e imóveis do conjunto suburbano. A vila é também distrito e, portanto, uma unidade administrativa e demográfica do município, dotada de seu juiz de paz, criada por lei estadual. Mas é um bem imóvel da Prefeitura, que pode nela colocar porteira e cadeado. Esse cadeado só pode ser aberto com inteligência. Com burocracia e mentalidade burocrática nunca o será.
Algo, aliás, parecido com o que ocorreu no início do século 19, na ampla região da Borda do Campo, quando os monges de São Bento se opuseram a que o bispo de São Paulo criasse paróquia em sua Fazenda de São Bernardo. Argumentou o abade que era impróprio erigir paróquia em propriedade particular. O assunto foi parar nas mãos de Dom João, Príncipe Regente, futuro Dom João VI. Li o extenso parecer de Sua Alteza Real, que deu nó em pingo d´agua para criar a paróquia de São Bernardo, em 1812, fazendo-o, porém, em terreno vizinho, fora do território da fazenda beneditina. Nessas coisas, o ABC já é complicado faz tempo, ao que parece.
Como Dom João já não está disponível (voltou para Portugal...), sobra a alternativa bem mais interessante de Buenos Aires, pois nem passaporte é necessário ou qualquer pedido prévio ao governo local para fotografar. Basta a carteira de identidade. E ainda sobram uns trocados para um chocolate quente com churro numa das acolhedoras casas desse ramo. Coisa própria para o frio e a neblina de Paranapiacaba, que eu ia sugerir e não sugiro mais.
( * ) Professor Emérito da Universidade de São Paulo. Dentre outros livros, autor de Subúrbio (Vida cotidiana e História no subúrbio da cidade de São Paulo), 2ª ed., Hucitec/Editora da Unesp (2002), A Sociabilidade do Homem Simples (Contexto 2008), A Aparição do Demônio na Fábrica (Origens sociais do Eu dividido no subúrbio operário), Editora 34 (2008), O Imaginário na Imigração Italiana, Fundação Pró-Memória, São Caetano do Sul (SP), (2003), O Cativeiro da Terra (nova edição revista e ampliada, Contexto, 2010, e A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto, 2011).
nem imaginava que existisse isso na lei. Mérito do PT que criou... e mérito do PTB que desenterrou essa aberração.
ResponderExcluirNo mais, estive em Paranapiacaba há algumas semanas e não tive problemas em fotografar o lugar.
Durante o Festival de Inverno vão confiscar os cartões de memória das máquinas de todos os visitantes? quero ver.
É incrível! Quase impossível descrever o sentimento diante de uma lei dessas! Parece uma censura velada.
ResponderExcluirSimone Massenzi.
À lª leitura, tal pagamento parece algo descabido e, portanto, injusto.
ResponderExcluirAssim sendo, num país democrata, onde até em sua bandeira (símbolo máximo dessa imensa Nação), é desfraldado o lema "Ordem e Progresso", não será preferível a mobilidade no combate a injustiças à sugestões de destinos alternativos?
Compreendo a sua manifestação e a sua indignação mas... não será mais importante a vitória contra uma injustiça do que trocar um destino "seu" por outro estrangeiro?
Sou portuguesa e estive em Paranapiacaba em Novembro último, e considerei como um dos lugares mais bonitos pelos quais viajei.
Até poderei ir a Buenos Aires mas... quero continuar a ir a Paranapiaca e desejar que amantes da fotografia (amadores ou profissionais) possam fotografar sem quaisquer constrangimentos e limitações.
Acredito no bom senso e na mobilidade da sociedade civil.
Isa, entenda a ironia!
ResponderExcluirdesculpe-me a intromissão,mas se for para fotografar ruínas te aconcelho o Coliseu,em Roma,vc não irá se arrepender,sem dizer na riquíssima história,não menosprezando nosso patrimonio histórico,mas brasileiro não dá valor nem importância cultural.
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